Desafios da Referência e Contrarreferência no SUAS: Garantindo a Integralidade dos Serviços Socioassistenciais

Tempo de leitura: 13 minutos

Por Letícia Fonseca

No universo da Assistência Social, a construção e manutenção de protocolos eficientes de referência e contrarreferência são essenciais para garantir o atendimento integral das demandas dos cidadãos em situação de vulnerabilidade. O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) foi estruturado com base em princípios de descentralização, participação e direção única, visando a promover uma rede socioassistencial de serviços articulados e complementares para fortalecer o acesso aos direitos fundamentais dos indivíduos. No entanto, esses objetivos esbarram em desafios que podem impactar a eficácia desse sistema.

Nesse contexto, um enfoque promissor para assegurar a plena operacionalização do SUAS reside na exploração aprofundada da referência e contrarreferência entre os distintos níveis de proteção social. É relevante salientar que a escassez de materiais abordando essa temática resulta na ausência de suporte pedagógico fundamental para capacitar os profissionais a implementarem, no cotidiano, aquilo que é preconizado.

Com base nisso, a ideia central desse texto está fundamentada na perspectiva de contribuir para a efetivação de um trabalho mais descentralizado e participativo, fixando a ideia do papel cogestor que cada equipamento social deve possuir e com a pretensão de que, ao ser tratado sobre a importância da integralidade entre os serviços, programas, projetos e benefícios, seja possível contribuir para o avanço na superação de uma assistência social vista como assistencialismo, imersa em ações fragmentadas e descontínuas.

A Jornada da Integralidade: Da LOAS à PNAS e ao SUAS

A trajetória da Assistência Social no Brasil evoluiu de forma progressiva, partindo da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) de 1993 até a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a posterior criação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). A PNAS, promulgada em 2004, e o SUAS, implementado em 2005, introduziram um modelo de gestão que buscava integrar serviços, programas e benefícios de forma descentralizada e participativa. Essa evolução reflete a busca pela garantia da cidadania e pela efetivação dos direitos sociais dos indivíduos em situação de vulnerabilidade.

E, portanto, para manter isso é necessário profissionais que trabalhem sobre a realidade da vida de cada família, visando à integralidade de suas demandas, fazendo as articulações – dentro do processo de referência e contrarreferência – devidas para encaixá-la em cada política necessária para a garantia plena de sua cidadania. Por isso que a assistência está organizada de forma a promover “um trabalho integrado entre segurança monetária de renda e trabalho social em serviços e programas” (COLIN; PEREIRA, 2013, p.101).

Ou seja, o Sistema Único de Assistência Social é equipado de modo que as demandas dos usuários, além da viabilização de sua autonomia e seus direitos, como visa o Código de Ética de Serviço Social (Lei nº 8.662/93), só são respondidos de forma integral por meio da complementariedade de ações socioassistenciais e intersetoriais.

A organização da assistência por meio do SUAS, em concordância seus princípios de descentralização, comando único e participação, possibilitou a qualificação dos serviços, esclarecimento das atribuições e um maior controle sobre o desenvolvimento das ofertas. Mas, como já antes mencionado, existem desafios que precisam ser superados para uma promoção continuada da oferta de proteção social.

Até aqui podemos abordar a perspectiva de organização da Assistência Social através das normativas que a estruturam. A frente vamos entender melhor o que a política de assistência social compreende como referência e contrarreferência e as dificuldades ainda existentes para a efetivação desses processos. Continue para conferir…

Desafios da Integralidade: Referência e Contrarreferência no SUAS

Apesar dos avanços proporcionados pela Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e pelo fortalecimento do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) como sistema unificado, ainda existem desafios substanciais na construção de uma rede de serviços eficiente e na implementação de protocolos eficazes de referência e contrarreferência. Nesse contexto, enfrentamos uma série de obstáculos que precisam ser abordados de maneira abrangente.

O que é Referência e Contrarreferência?

O Caderno de Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS (2009) fala que:

“A função de referência se materializa quando a equipe processa, no âmbito do SUAS, as demandas oriundas das situações de vulnerabilidade e risco social detectadas no território, de forma a garantir ao usuário o acesso à renda, serviços, programas e projetos, conforme a complexidade da demanda. O acesso pode se dar pela inserção do usuário em serviço ofertado no CRAS ou na rede socioassistencial a ele referenciada, ou por meio do encaminhamento do usuário ao CREAS. A contrarreferência é sempre que a equipe do CRAS recebe encaminhamento do nível de maior complexidade (proteção social especial) e garante a proteção básica, inserindo o usuário em serviço, benefício, programa e/ou projeto de proteção básica.” (p.10)

Podemos extrair dessas orientações, então, que dentro do trabalho social com as famílias deve haver mecanismos que garantam a proteção social delas sem haver descontinuidade ou descobertura no processo de acompanhamento familiar, o que promove uma rede de proteção mais aproximativa a plena garantia de direitos do usuário.

Por isso, os conceitos de referência e contrarreferência traduzem o modo como devem funcionar as engrenagens para o trabalho social seja ofertado de forma integral.

– A referência diz respeito a oferta da proteção social básica e/ou ao encaminhamento da família da proteção básica a um nível mais alto de complexidade;

– E a contrarreferência, remete ao encaminhamento de um nível mais alto de complexidade para um mais básico.

Veja que esse processo não se resume a um protocolo de encaminhamentos, mas sim ao fluxo integrativo e completar da rede socioassistencial. Compreendendo que a Rede Socioassistencial é:

um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, que ofertam e operam benefícios, serviços, programas e projetos, o que supõe a articulação entre todas as unidades de provisão de proteção social, sob a hierarquia de básica e especial e ainda por níveis de complexidade. (PNAS, 2004, p. 94)

No entanto, a falta de compreensão do trabalho em rede acaba limitando as ações dos profissionais aos seus próprios locais de trabalho, o que resulta na passagem de bastão da responsabilidade do usuário entre unidades considerando a ausência ou não de violação de direitos, quando na realidade a complexidade das demandas dos usuários são para além das caixinhas em que fechamos nossas intervenções.

Quando aprofundamos a compreensão de referência e contrarreferência compreendemos que o foco está na superação das demandas do usuário e o seu total acesso aos direitos sociais, e isso pode necessitar envolver para além da rede socioassistencial, mas também as articulações intersetoriais.

Vamos elencar 5 desafios que ainda existem para garantia dessa integralidade:

Desafio 1: Transição Entre Níveis de Complexidade dos Serviços

A transição entre os diferentes níveis de complexidade dos serviços, a fim de garantir um atendimento adequado às necessidades individuais, emerge como um desafio crucial. Idealmente, esse processo deveria operar como uma estratégia coordenada e voltada para a demanda do usuário. Contudo, tem sido observado que, em algumas situações, essa transição é utilizada como uma mera transferência de responsabilidade. Lamentavelmente, tal abordagem impacta negativamente o usuário, comprometendo a continuidade do acompanhamento.

O afastamento do técnico que acompanhou o indivíduo desde o início pode resultar em revitimização, exacerbando possíveis traumas, e ocasionar uma descobertura dos serviços necessários ainda do outro nível de complexidade.

Desafio 2: Articulação Intersetorial para a Integralidade do Atendimento

Além disso, a ausência de articulação eficaz entre os diferentes equipamentos e serviços socioassistenciais pode resultar em uma abordagem fragmentada, limitando a integralidade do atendimento. Quando não há diálogos de rede, discussões de caso, fluxos entre gestão e serviços isso reflete nas famílias acompanhadas que não conseguem vislumbrar resultados concretos, o que pode levar as famílias a considerarem desistir do acompanhamento familiar.

Desafio 3: Risco de Retrocesso a Modelos Focalizados e Clientelistas

Para além da compreensão de que o processo de referência e contrarreferência desempenha um papel fundamental na maximização do atendimento abrangente das demandas apresentadas, é crucial ressaltar que ele opera como um contraponto ao cenário no qual a coordenação entre os serviços é inadequada. Nesse contexto, ocorre a ressurgência de um modelo de assistência que é focalizado e, por vezes, orientado a interesses específicos (clientelista).

A efetiva referência e contrarreferência, por outro lado, sustentam o princípio da integralidade, promovendo uma abordagem coordenada e interconectada que abarca as necessidades diversas dos indivíduos e das famílias atendidas. Isso garante que o suporte oferecido não seja fragmentado ou seletivo, mas sim abranja uma gama completa de serviços e ações que contribuam para a inclusão social dos beneficiários.

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esafio 4: Limitações em Municípios de Pequeno Porte

Vale destacar que a presença de um Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) e uma rede socioassistencial estabelecida não é uma realidade uniforme em todos os municípios, especialmente aqueles de menor porte. Essa variação na infraestrutura e na estruturação da rede pode se traduzir como um desafio à eficácia das iniciativas. Em locais onde a falta desses recursos é evidente, a habilidade de realizar um processo de referência e contrarreferência eficiente pode ser prejudicada. Dessa forma, é imprescindível considerar essas disparidades ao discutir a viabilidade e a implementação dessas práticas, visando sempre alcançar a inclusão e a qualidade do atendimento independentemente das características teeritoriais do município em questão.

Desafio 5: Compreensão dos técnicos de suas competências e atribuições

A compreensão sólida dos técnicos sobre suas competências e atribuições é uma peça fundamental no que diz respeito à implementação eficaz da referência e contrarreferência dentro do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). No entanto, um desafio significativo reside na falta de clareza que muitas vezes permeia essa área.

A complexidade das funções desempenhadas pelos técnicos, aliada à constante rotatividade desses profissionais, pode levar a uma falta de entendimento consistente sobre as dinâmicas da política de assistência social. A transmissão insuficiente de conhecimentos, especialmente quando novos profissionais ingressam nas equipes, pode gerar uma compreensão inadequada das responsabilidades individuais e coletivas, resultando em uma abordagem desarticulada na aplicação da referência e contrarreferência.

A ausência de um programa de educação permanente aprofunda ainda mais esse desafio. A educação permanente é um componente vital para manter os técnicos atualizados sobre as diretrizes, regulamentações e propósitos do SUAS, permitindo-lhes compreender a importância da referência e contrarreferência como instrumentos de integração e continuidade dos serviços socioassistenciais.

Leia também: As potencialidades do Acompanhamento Familiar na Assistência: porquê fazer um Plano de Acompanhamento.

Fortalecendo a Integralidade: Articulação e Educação Permanente

A referência e a contrarreferência, ainda, são processos que precisam ser consolidados nos municípios. Para superar esses desafios, é crucial investir na articulação intersetorial e no fortalecimento da educação permanente para os profissionais envolvidos na Assistência Social.

A construção de fluxos de encaminhamento bem definidos e o estabelecimento de momentos regulares de diálogo entre equipes municipais com acompanhamento e direcionamento assíduo da gestão, são passos fundamentais para garantir a continuidade e a complementaridade dos serviços. Além disso, é essencial que os profissionais possuam uma visão integrada das problemáticas sociais e sejam capacitados para a aplicação de protocolos eficientes de referência e contrarreferência.

Leia também: O correto preenchimento do Prontuário SUAS e sua importância para a materialização da Proteção Social.

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Conclusão

Em síntese, a busca pela integralidade dos serviços socioassistenciais passa pela superação de desafios que envolvem a articulação entre os diferentes níveis de atendimento e a formação de uma rede socioassistencial sólida e eficaz. Ao estabelecer protocolos bem estruturados de referência e contrarreferência, o SUAS pode desempenhar plenamente seu papel na promoção da cidadania e na garantia dos direitos fundamentais da população em situação de vulnerabilidade, consolidando a visão de uma Assistência Social pautada na integralidade e na efetividade dos serviços.

A construção de uma rede socioassistencial verdadeiramente integrada não é apenas uma responsabilidade governamental, mas um compromisso coletivo de toda a sociedade. Ao promover a educação permanente, o diálogo entre os setores e a conscientização da importância da integralidade, estamos pavimentando o caminho para uma Assistência Social que não apenas atende às demandas imediatas, mas que também contribui para a transformação social e a promoção da dignidade humana.

Referências

BOMFIM, Jéssica Caroline M. Silva. INTEGRALIDADE DA PROTEÇÃO SOCIAL NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: as funções referência e contrarreferência. X Jornada Internacional de Políticas Públicas. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2021/images/trabalhos/trabalho_submissaoId_353_3536101f50d319b3.pdf . Acesso em 18 de agost. de 2023.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Caderno de Orientações – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos. Articulação necessária na Proteção Social Básica. Brasília-DF, 2016.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome. Coletânea de Artigos Comemorativos dos 20 Anos da Lei Orgânica de Assistência Social. 1ª ed. Brasilia: MDS, 2013.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional da Assistência Social – PNAS/2004 e Norma Operacional Básica da Assistência Social – NOB/SUAS – Brasília, DF: MDS, 2005.

______. Norma Operacional Básica do Sistema Único de Assistência Social – NOB/SUAS. Brasília-DF, 2012.

_____. Orientações Técnicas: Centro de Referência de Assistência Social – CRAS/ Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Brasília-DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2009.

 

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