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Réis, cruzeiro, cruzado, diversas foram as moedas que fizeram parte da história do Brasil. No entanto, existe uma, menos conhecida apesar de ainda em circulação, na qual vamos reter nosso olhar hoje: a Palma, a primeira moeda social do Brasil.
Segundo João Joaquim de Melo Neto, idealizador e coordenador do Banco Palmas, o conceito de moeda social, ou melhor, Moeda Social Circulante Local, é de ser um instrumento que permita que o dinheiro circule localmente, num sistema de trocas pautado na solidariedade e cooperação.
Dessa forma, uma moeda social tem o poder de fazer com que as comunidades onde estão baseadas prosperem, com mais riqueza circulando localmente. Por isso, o conceito tem sido adotado por um número cada vez maior de localidades que buscam, nessa medida, promover o desenvolvimento de suas comunidades.
Desde a criação da Palma, há vinte e dois anos atrás, ela foi se transformando de moeda de papel fabricada no Word até chegar na contemporaneidade na forma de moeda social eletrônica. Hoje, está consolidada como um modelo que se adapta às necessidades econômicas locais/territoriais/comunitárias, consagrando essa capacidade adaptativa, de leitura da realidade local em uma marca que se contrapõe aos modelos financeiros tradicionais. Vamos conhecer mais sobre ela?
Quem inventou a Moeda?
A palavra moeda originou-se do Latim monere, “advertir, admoestar, avisar”, mas como eu adoro histórias, não posso me furtar aqui de relatar uma que li. Numa das invasões dos bárbaros à Itália, um grupo deles tentou escalar a parte da muralha de Roma junto à qual, pelo lado de dentro, se situava um templo dedicado à deusa Juno.
Os gansos, que na mitologia romana eram consagrados à deusa Juno, estavam no terraço do templo e foram eles que deram o alarme para os soldados romanos, que correram e afugentaram o inimigo. Em agradecimento os romanos declararam que aquele templo era dedicado a Juno Moneta, “a Juno que avisa”. Mais tarde, nesse templo, se estabeleceu um local onde se cunhavam discos metálicos com valor definido, próprios para fazer negócios de compra e venda. Esses discos receberam um nome derivado da deusa do templo: moneta ou moeda.
Séculos depois, atualmente, existem no Brasil, além do Real, 115 moedas sociais em circulação, segundo a Rede Brasileira de Bancos Comunitários. Todas elas baseadas no modelo criado por Joaquim de Melo, a moeda social Palma, idealizada por ele em 1998 e que circula no Conjunto Palmeiras, em Fortaleza.
A história dessa moeda e, consequentemente, do Banco Palmas, que gere a moeda, é indissociável do movimento de luta do Conjunto Palmeiras. O bairro, na região sul da capital cearense, nasceu da organização comunitária após a Prefeitura de Fortaleza desapropriar cerca de 1500 famílias de suas casas, na zona costeira da capital, em 1973.
A moeda social Palma na prática
Passadas mais de duas décadas após os primeiros assentamentos no Conjunto Palmeiras, conceber um banco dentro do território foi a estratégia que deu as melhores resposta às necessidades identificadas pela própria comunidade. Até a criação da moeda, a maioria das compras dos moradores eram feitas fora de lá, de modo que pouco dinheiro se mantinha e era reinvestido na comunidade.
A história de luta e resistência é inspiradora e quem tiver interesse pode ler na publicação do próprio Instituto Banco de Palmas, Banco Comunitário e Cooperativa de Crédito – Uma relação necessária para potencializar as finanças da periferia.
A Palma, bem como todas as outras moedas sociais do país, por exigência do Banco Central, é lastreada em reais. Isso significa que uma Palma é equivalente a um Real e que o Banco Palmas tem, sob sua guarda, valor equivalente em reais ao que circula em Palma.
O mesmo banco concede microcréditos em Palma livre de juros para a produção e para o consumo na comunidade. Suas notas possuem muitos dos mesmos elementos de segurança que o Real, como a confecção em papel moeda, faixa holográfica, numeração seriada, código de barras, etc. Além disso, desde a sua criação, a moeda social foi se adaptando para ser tornar mais acessível e funcional. Logo, não pôde deixar de entrar na era digital.
Atualmente a moeda eletrônica social é o E-dinheiro, que pode ser utilizada através de um aplicativo disponível para os sistemas Android e iOS. Neles, os usuários podem fazer operações financeiras de maneira facilitada, da mesma maneira que nos outros bancos, como, por exemplo, fazer saques, pagar boletos, compras, colocar crédito no celular ou fazer transferências. Muitas das transações financeiras feitas com o E-dinheiro possuem tarifas menores do que nos bancos tradicionais.
A principal diferença é que ela oportuniza principalmente a inserção das classe sociais desfavorecidas, gerando desenvolvimento local, fomentando o comércio e serviços de cada território. Outro aspecto importante é que como ela é administrada pelo sistema financeiro de Bancos Comunitários propicia a sustentabilidade dessas instituições.
As potencialidades da moeda social
A experiência da Palma contribui para reafirmar a crença sobre as potencialidades territoriais e de construção de novo modelo econômico. Com isso, é possível ressignificar uma sociedade, estimular as pessoas a acessarem os bens e serviços socialmente produzidos, a despertar o sentimento de pertencimento social, de aumento da autoestima, da confiança e do protagonismo.
Outra questão é de que a moeda social propicia uma relação ganha-ganha quando circula dentro de uma comunidade, pois, a ideia é que as pessoas comprem no comércio local e usem os serviços da comunidade. O resultado é um aumento e fidelização da clientela e no fortalecimento da rede local de economia solidária, permitindo que os pequenos negócios se desenvolvam e prosperem.
Outro fator relevante é que a moeda social pode impulsionar a criação de novas marcas que expressem a identidade de uma comunidade, de negócios tecnológicos cuja visão de mercado não oportuniza as pessoas em situação de vulnerabilidade e de ampliação de serviços e comércio adequados para as diferentes necessidades que cada comunidade apresenta.
Por outro lado, a moeda social nos faz refletir sobre as relações de consumo dentro do sistema capitalista. É fato que precisamos de dinheiro para garantir as condições materiais de existência. Contudo, a economia solidária altera essa ótica quando privilegia as relações entre os seres humanos e nos reeduca para uma forma de consumo na qual a nossa existência não deve estar pautada no consumo desenfreado, mas no necessário para viver. Um consumo consciente que leve em consideração, por exemplo, o meio ambiente, o preço justo, a origem do produto, os processos de produção que não envolvam mão-de-obra escrava ou infantil, enfim, uma série de preocupações biopolíticas.
A moeda social traz essa perspectiva de ajustes de lentes em que o dinheiro não deve ser encarado como um fim no qual alguns enriquecem com a especulação financeira e, sim, como um meio que liga pessoas, que cria produtos e serviços para servir aos sujeitos. A experiência de sucesso do Conjunto Palmeiras, em Fortaleza – Ceará, sedimenta o caráter emancipatório que a moeda social pode proporcionar, mas também evidencia a luta contra um Estado mínimo cuja a maior instituição financeira, o Banco Central, tentou criminalizar a experiência comunitária organizada que “desobedeceu” ao status quo, haja vista a trajetória do Banco de Palmas.
Conclusão
Embora estudos sobre bancos comunitários ainda sejam incipientes, a Palma já saiu da sua condição de experiência, solidificou-se e atualmente possui uma sede própria, no Conjunto Palmeiras.
Tais conquistas permitiram com que a tecnologia social desenvolvida pelo Banco de Palmas fosse disseminada para outras regiões do Brasil. Essa expansão tornou necessária a criação de uma Rede Brasileira de Bancos Comunitários.
Observando os aspectos sócio-históricos-culturais brasileiros, em certa medida a Moeda Social Circulante Local realiza justiça social quando considera e inclui a diversidade e pluralidade de sujeitos históricos individuais e coletivos. Mais do que isso, que modificam e são modificados pelo contexto social, político, ideológico e cultural através do tempo e espaço, cujas questões econômicas são atravessadas por marcadores sociais de diferença, como, por exemplo, gênero, classe social, etnia.
Por fim, fica evidenciado o papel social desempenhado pela Moeda Social Circulante Local que, no entanto, não está descolada de uma superestrutura, cuja distribuição de renda é desigual.
A pergunta que ecoa nas nossas mentes e nos nossos corações: quem inventou a moeda? Para respondê-la é preciso pisar no chão das fábricas, ouvir a voz dos excluídos e marginalizados, dos quilombolas e indígenas e ribeirinhas, das comunidades, das periferias, da classe trabalhadora. É preciso respirar o ar do Conjunto Palmeiras.
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