A lei da escuta protegida e seus efeitos no SUAS

Tempo de leitura: 32 minutos

Por Jarléia Paiva

A Lei nº 13.431/2017 visa o fortalecimento do compromisso do Brasil com a proteção às crianças e aos adolescentes, aperfeiçoando o que já estar preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente para assegurar-lhes acolhida cuidadosa e respeito à dignidade nas situações em que forem vítimas ou testemunhas de violência. Amplia ainda a responsabilidade do país, na coordenação de esforços e na cooperação entre os diferentes atores que integram o SGD para a adoção de melhores medidas, procedimentos e práticas para a garantia do superior interesse de crianças e adolescentes.

A política de Assistência Social desenvolve um papel relevante,  por intermédio das ofertas da Proteção Social Básica (PSB) e da Proteção Social Especial (PSE) do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), na prevenção e no atendimento a famílias e indivíduos que sofreram violência ou outras violações de direitos – inclusive crianças e adolescentes – visando a superação destas situações e o restabelecimento de condições de vida em contextos familiares e comunitários favorecedores do desenvolvimento humano.

A Lei nº 13.431/2017 e o Decreto nº 9.603/2018 reforçaram a função da política de Assistência Social como política de proteção social e a importância do trabalho articulado e em rede pelos diferentes atores do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência para a proteção à integridade física e psíquica e aos direitos das crianças e dos adolescentes que tenham vivenciados estas situações.

Considerando os aspectos anteriormente mencionados, o presente texto vislumbra elucidar aos profissionais do SUAS – gestores e trabalhadores juntamente com os  demais atores da rede as possibilidades e limites de atuação da política de Assistência Social no atendimento e acompanhamento de crianças e adolescentes em situação de violência e suas famílias. É de fundamental importância a clareza das competências de cada órgão integrante do Sistema de garantias de direito, considerando as diferentes atribuições das políticas que integram a rede de proteção e os órgãos responsáveis pela investigação e responsabilização, com o intuito de potencializar práticas voltadas à proteção de crianças e adolescentes, visando o seu crescimento e desenvolvimento a salvo de qualquer forma de violência.

Leia também: Escuta Protegida e sua relação com a Escuta Especializada no NO SUAS

O que a lei de escuta protegida propõe?

As primeiras definições legais do que seja a escuta especializada foram oferecidas na Lei nº 13.431/2017 e no Decreto nº 9.603/2018. Contudo, elas devem ser compreendidas como um conceito em construção. Muitos profissionais ainda debatem sobre a diferença entre a escuta especializada e o depoimento especial, particularmente sobre os procedimentos éticos e protocolares da escuta especializada.

A escuta especializada é um conjunto de interações com a criança e o(a) adolescente vítima ou testemunha de violência, destinado a coletar informações para o acolhimento e o provimento de cuidados de urgência e proteção integral, de forma a assegurar a oportunidade de serem ouvidos em todos os processos decisórios que os afetem.

Este tipo de escuta, conforme estabelecido no Decreto nº 9.603/2018, “não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização” (BRASIL, 2018, art. 19, § 4º). Nessas interações, os profissionais não devem indagá-los sobre os fatos de violência ocorridos, e elas devem sempre acontecer em um contexto de procedimentos preventivos da vitimização secundária, ou seja, em ambientes amigáveis que lhes assegurem condições de privacidade e proteção.

Os procedimentos devem incluir os convites à narrativa livre (perguntas abertas), a escuta sem interrupções e o registro por escrito das manifestações verbais e comportamentais que, espontânea e voluntariamente, fizer a criança ou o(a) adolescente.

Entendendo o que é revitimização para proteger crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

A violência contra crianças e adolescentes é uma realidade que exige grande atenção em nosso país. Segundo informações apresentadas pela Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, no ano de 2018 as principais denúncias de violações de direitos humanos recebidas foram de casos envolvendo crianças e adolescentes, representando média de 209 denúncias por dia e 55,28% do total das denúncias realizadas aos canais. Agravando mais esse cenário, ocorre, com acentuada frequência, a revitimização dessas crianças e adolescentes durante o atendimento ofertado pelas instâncias públicas governamentais e da sociedade civil que constituem o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente – SGD.

Segundo o Decreto nº 9.603/2018. art. nº5, II revitimização é definida como discurso ou prática institucional que submeta crianças e adolescentes a procedimentos desnecessários, repetitivos, invasivos, que levem as vítimas ou testemunhas a reviver a situação de violência ou outras situações que gerem sofrimento, estigmatização ou exposição de sua imagem.

Na busca por transformar essa realidade e efetivar a proteção integral de crianças e adolescentes, em abril de 2017 foi promulgada a Lei nº 13.431, que entrou em vigor no ano seguinte. Esta lei normatizou o Sistema de Garantia de Direitos-SGD da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, criou mecanismos para prevenir e coibir a violência e estabeleceu medidas de assistência e proteção à criança e ao adolescente em situação de violência, definindo, ainda, os princípios para a escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com foco na eliminação de procedimentos revitimizantes.

A organicidade do compartilhamento de informações como forma prática de evitar a revitimização.

Com o propósito de eximir a revitimização de crianças e adolescentes, os órgãos do SGD devem coparticipar entre si, de forma integrada, por meio de relatórios e em conformidade com o fluxo estabelecido em âmbito local, as informações sobre a situação de violência relatadas espontaneamente no atendimento e que podem contribuir para a continuidade do acompanhamento das vítimas ou testemunhas de violência e suas famílias. Tais informações devem ser registradas de maneira objetiva, sem interpretações por parte do (da) profissional, aproximando-se o máximo possível do relato realizado pela criança ou adolescente em situação de violência, pela sua família ou por outras pessoas da sua rede comunitária.

É relevante ressaltar que dentro da dinâmica de desenvolvimento da escuta protegida no SUAS os(as) trabalhadores desse sistema, devem participar do compartilhamento de informações com o SGD por meio de relatórios específicos para esta finalidade, organizados pelo coordenador (a) do serviço em conjunto com o (a) técnico (a) de referência. Estes relatórios podem conter informações sobre a situação de violência, quando houver esse relato, e sobre o acompanhamento socioassistencial realizado com a criança ou adolescente e sua família.

Na realização do trabalho em rede, para atender os interesses de crianças e adolescentes, além do compartilhamento de informações por meio de relatórios, as informações poderão ser compartilhadas em reuniões interinstitucionais, audiências concentradas e outros dispositivos que visam o cumprimento da legislação. Todo esse processo deve assegurar a reserva no compartilhamento destas informações aos órgãos do SGD que efetivamente precisem ter acesso às mesmas, resguardando-se, assim, a privacidade da criança e do adolescente e sua família e o respeito às questões relativas à ética e sigilo profissional.

Ressalta-se que entre os serviços com responsabilidade de atuação na situação, o sigilo é transferido e compartilhado, mas não quebrado, ou seja, o compartilhamento de informações essenciais para o prosseguimento do atendimento em outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos não deve ser entendido como a quebra do sigilo, mas como a transferência destes aos demais órgãos responsáveis pelo atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência e suas famílias, como forma de evitar a revitimização e assegurar direitos das crianças ou adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Nos termos do Art. 9º, § 2º, do Decreto nº 9.603/2018:

“Os serviços deverão compartilhar entre si, de forma integrada, as informações coletadas junto às vítimas, aos membros da família e a outros sujeitos de sua rede afetiva, por meio de relatórios, em conformidade com o fluxo estabelecido, preservado o sigilo das informações”.

Em casos de extrapolação ao compartilhamento das informações no âmbito dos órgãos que efetivamente precisam das mesmas para a proteção à criança e ao adolescente, os (as) profissionais podem incorrer no previsto no Art. 154 do Código Penal Brasileiro. Além disso, algumas categorias profissionais, como de assistentes sociais, psicólogos (as) e advogados (as), por exemplo – têm códigos de ética próprios que normatizam sobre a responsabilidade do sigilo profissional e as sanções no caso de desrespeitá-la.

No processo de discussão e elaboração dos fluxos e protocolos intersetoriais deve-se buscar a definição de fluxos de encaminhamento e compartilhamento de informações entre a rede de proteção e os órgãos de responsabilização. Essa estratégia visa contribuir para o adequado compartilhamento destas informações, com respeito a questões de privacidade, ética e sigilo e, ainda, a horizontalidade no compartilhamento de informações entre órgãos corresponsáveis componentes do Sistema de Garantia de Direitos.

As duas normativas anteriormente referidas inovaram por estabelecer mecanismos e princípios de integração das políticas de atendimento a crianças e adolescentes, reforçando a relação de corresponsabilidade entre as políticas públicas no que tange à garantia da proteção integral, considerando a sua condição peculiar de sujeitos em desenvolvimento. Essas normativas demarcaram, sobretudo, a diferenciação necessária das atribuições das instâncias do SGD, ao definir procedimentos distintos a serem observados no atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência:

  1. a escuta especializada, realizada por órgãos da rede de proteção, como os serviços da saúde, da educação, da assistência social, dos direitos humanos e da segurança pública; e
  2. . o depoimento especial, realizado pelos órgãos investigativos de segurança pública e pelo Sistema de Justiça.

A escuta protegida e o SUAS na proteção de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.

Com base na Lei nº 13.431/2017, o SUAS tem por objetivo realizar o atendimento e/ou acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência e suas famílias, com vistas a evitar a continuidade e repetição da violência, fornece suporte para superação das consequências da violação sofrida e prevenir agravos, limitando-se ao cumprimento da sua finalidade de proteção socioassistencial.

Diante das situações de violência e violação de direitos contra crianças e adolescentes, vítimas ou testemunhas, o SUAS disponibiliza todo o seu arcabouço de ofertas, tanto aquelas voltadas à prevenção, por meio dos serviços da Proteção Social Básica, quanto aquelas voltadas ao atendimento e acompanhamento das situações mais grave, por meio dos serviços da Proteção Social Especial de Média e Alta Complexidade.

De acordo com a PNAS, estamos diante de uma família quando encontramos um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade (BRASIL, MDS, 2004, p. 41). A família, independentemente dos formatos ou modelos que assume, é mediadora das relações entre os sujeitos e a coletividade, delimitando continuamente os deslocamentos entre o público e o privado, bem como geradora de modalidades comunitárias de vida. Todavia, não se pode desconsiderar que ela se caracteriza como um espaço contraditório, cuja dinâmica cotidiana de convivência é marcada por conflitos e geralmente, também, por desigualdades (BRASIL, MDS, 2004, p. 41).

Considerando as diretrizes da matricialidade sociofamiliar e do território, as situações de violência contra crianças e adolescentes não podem ser analisadas sem considerar seu contexto de vida familiar – onde emerge a proteção e/ou violação de direitos – e o território onde estão inseridos a criança, o adolescente e sua família.

A capacidade protetiva das famílias está diretamente relacionada a aspectos intrafamiliares – como história, transgeracionalidade e relações estabelecidas entre seus membros – e extrafamiliares – como redes de apoio e pertencimento, contextos socioculturais, históricos e econômicos em que estão inseridas, acesso a direitos e recursos das políticas públicas disponíveis no território onde vivem.

Estes elementos são essenciais para a compreensão contextualizada das situações de violência e violação de direitos de crianças e de adolescentes e a garantia de seu superior interesse. Estas situações são multideterminadas, se apresentam com diferentes configurações, podem implicar violência praticada por agressor que não pertence ao núcleo familiar e/ou violência intrafamiliar e demandam a adoção de procedimentos caso a caso para assegurar a proteção das crianças e dos adolescentes – pois há situações em que é possível assegurar esta proteção no próprio contexto familiar e situações em que isso não é possível.

Desta maneira as ofertas do SUAS potencializam os recursos individuais, familiares e comunitários para a superação de vulnerabilidades, das situações de risco pessoal e social, bem como atuam na prevenção da reincidência ou agravamento das situações de violência, situação de rua, vivência de trabalho infantil, discriminações – por orientação sexual, raça/cor e etnia – e outros.

Vejamos adiante alguns aspectos importantes em relação a aplicação da escuta protegida e o SUAS:

a) Revelação espontânea

Quando a criança ou adolescente, em um contexto de atendimento já em andamento no SUAS, revelar espontaneamente que vivenciou ou testemunhou situação de violência para a (o) profissional do SUAS, os seguintes procedimentos devem ser adotados:

1.Acolhida da revelação espontânea, que pode ocorrer para qualquer trabalhadora ou trabalhador do SUAS, pois é realizada, geralmente, ao profissional com o qual a criança ou o adolescente possui vínculo mais significativo e sente confiança. Portanto, toda trabalhadora e todo trabalhador do SUAS deve estar preparado para observar sinais e acolher a revelação espontânea da criança e do adolescente que podem estar vivenciando situação de violência. Nesses casos, todo esforço deve ser empreendido no sentido de evitar a revitimização da criança ou do adolescente com escutas, procedimentos e encaminhamentos inadequados ou desnecessários.

Nos casos em que a criança ou o adolescente fizer a revelação espontânea, é importante:

2.Se mostrar acessível e disponível para a escuta, caso a criança ou adolescente demonstre querer se manifestar sobre a situação, respeitando seu próprio ritmo, vocabulário e sua forma de comunicação, sem interpretação, avaliação e julgamento por parte de quem escuta. É fundamental assegurar privacidade, bem como evitar ansiedade ou curiosidade por informações e detalhes que levem a criança ou o adolescente a se sentir pressionado a contar algo.

  1. Procurar identificar se a criança ou adolescente já se informou sobre a situação á outra pessoa, as ações de proteção adotadas, se for o caso, ou se há situação de omissão/negligência; identificar possíveis responsáveis/ pessoa de referência que podem exercer a proteção no âmbito familiar (família de origem ou extensa) e comunitário. Para se chegar a estes alvos pode-se utilizar a pergunta orientadora: Alguém mais sabe disso? Caso a criança ou adolescente informe que já realizou o relato para algum adulto (familiar, profissional de outro serviço, etc.), deve-se priorizar a coleta de informações junto a essa pessoa, de modo a proteger a criança ou adolescente da repetição do relato sobre a situação de violência vivenciada. No entanto, isso não deve interromper a acolhida da criança ou adolescente que fez a revelação espontânea.
  2. Proporcionar a acolhida e escuta do relato espontâneo, estabelecendo ou reafirmando o vínculo para proceder ao acompanhamento familiar. Para alcançar tais objetivos, pode-se utilizar a pergunta orientadora: Você quer falar sobre isso?

b) Escuta do livre relato:

Deve-se sempre observar quando a criança ou adolescente expressar interesse em se manifestar sobre a situação de violência da qual foi vítima ou testemunha (mesmo que já tenha relatado a situação a outra pessoa), a escuta deve permitir o livre relato, respeitando o desejo do sujeito, e também  Considerar a necessidade de identificar pessoas adultas/responsáveis que já podem ter ciência da violência sofrida pela criança ou adolescente (amigo (a), irmão ou irmã, professor (a), tia ou tio, vizinha (o) etc.) o seu silêncio, com o mínimo de interferência possível no relato espontâneo.

É importante que o profissional se mostre acessível e disponível para a escuta; não realize perguntas que possam constranger ou reprimir a criança ou o adolescente ou induzir respostas. Recomenda-se que sejam evitadas perguntas cujas respostas não agreguem informações necessárias para a proteção da criança e do adolescente e para a realização de encaminhamentos subsequentes para os órgãos do SGD – como o encaminhamento para provisão de cuidados urgentes no âmbito da saúde, por exemplo. Também não se deve colocar em dúvida o relato e nem submeter a criança ou adolescente a julgamentos morais e/ou discriminatórios.

OBS.: No caso de a revelação ocorrer perante trabalhadora ou trabalhador do SUAS que não é responsável direto pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial (por exemplo, profissionais de serviços gerais), preferencialmente, a escuta deve ser realizada em conjunto com quem acolheu a revelação espontânea e um (uma) profissional da equipe de referência responsável direto pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial, de nível médio ou superior. No entanto, tal situação pressupõe que seja possível atender à demanda imediatamente e que haja o consentimento da criança ou adolescente em relação à participação de outro (a) profissional na escuta de seu relato; caso contrário, o (a) profissional que acolheu a revelação espontânea deve escutar o relato e posteriormente acionar o (a) profissional responsável direto pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial.

c) Informação à criança e ao adolescente sobre possíveis desdobramentos da revelação:

É recomendado que a criança e o adolescente devem sempre ser informados, em linguagem adequada à sua capacidade de compreensão, sobre as consequências da revelação. Tais desdobramentos podem incluir os encaminhamentos aos demais órgãos da rede de proteção e responsabilização e repercussões relacionadas (próximos passos, repercussões da revelação, direitos assegurados, etc.); a continuidade do atendimento no serviço do SUAS; a inclusão em outros serviços da política. Assim, não devem ser feitas perguntas do tipo: “Foi [nome da pessoa/grau de parentesco] que fez isso com você?” (não direcionar um nome, para não induzir respostas); “Como ou o que exatamente o(a) [nome/parentesco] fez?”; “O que você sentiu quando isso aconteceu?”; “O que você acha que vai acontecer quando sua família/outras pessoas descobrir (em)?”; “Você sabe que isso é muito sério e pode prejudicar muitas pessoas?”; “Você nunca tentou fazer nada para que isso não acontecesse?”.

Quando se trata de situações de violência contra adolescentes, especialmente situações de violência sexual com jovens do sexo feminino, tendem a ser ainda mais estigmatizadas, pois parte-se do pressuposto que nessa fase da vida a adolescente já tem plenas condições de compreender e de se proteger de determinadas situações de violência, ou mesmo que esta seria “culpada” por ter sofrido violência ou julgada “por comportamento tido como inadequado” ou por “usar vestimenta inapropriada”. Nessas situações é imprescindível à/ao profissional assumir postura ética e orientada para a proteção integral, para não revitimizar a/o adolescente e não culpabilizar a vítima.

Também deve-se buscar abordar com a criança e o adolescente a possibilidade de comunicar a situação a um familiar e/ou responsável com vínculo significativo com o qual possa contar para assegurar sua proteção. Estas informações à criança e ao adolescente têm como objetivo assegurar-lhes o direito à participação e informação sobre procedimentos que lhe dizem respeito, para que tenham a consciência de que houve uma violação de seus direitos, que precisam ser protegidos e que o (a) profissional do SUAS deve realizar encaminhamentos e procedimentos para assegurar sua proteção.

Objetivam, ainda, preservar a relação de confiança, evitando-se que as crianças e os adolescentes sejam surpreendidos com as ações dos órgãos competentes e se sintam traídos ou em conflito ético para com os (as) profissionais do SUAS.

d) Identificação de demandas de cuidados imediatos ou urgentes:

É necessário, durante o momento de escuta do relato, identificar possíveis demandas de cuidados que requerem encaminhamento urgente para serviços de saúde, como situações de violência sexual ou lesões físicas, por exemplo.

OBS.: Caso o (a) profissional que tenha realizado essa identificação não seja responsável direto pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial, deve-se comunicar imediatamente o (a) profissional responsável pelo atendimento direto para que possa tomar as medidas necessárias aos devidos encaminhamentos para os serviços de saúde.

e) Relato imediato para a equipe de referência:

O (A) profissional do SUAS que realizou a escuta da revelação espontânea e do livre relato deve acionar, com brevidade, os (as) profissionais responsáveis diretos pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial, para que se possa avaliar as medidas que devem ser tomadas para assegurar a proteção da criança e do adolescente – que podem incluir encaminhamentos a órgãos da rede de proteção e responsabilização, serviços de saúde, início do atendimento e acompanhamento socioassistencial da criança ou adolescente e sua família considerando a situação relatada, etc. Essa equipe procederá aos encaminhamentos necessários, inclusive os casos que demandarem encaminhamento urgente para os serviços de saúde.

As informações que o (a) profissional transmitirá à equipe responsável pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial devem se ater ao mais próximo possível à reprodução do relato da criança ou adolescente, sem interpretações ou julgamentos por parte do (da) profissional.

O meio pelo qual o (a) profissional acionará a equipe responsável direta pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial deve ser definido em âmbito local – comunicação oral, relato escrito, reunião de equipe, dentre outros procedimentos – e considerar a celeridade do atendimento que estas situações exigem.

f) Comunicação ao Conselho Tutelar:

A equipe responsável direta pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial que tenha realizado a escuta da revelação espontânea e do livre relato, ou tenha sido acionada por outro (a) profissional que realizou essa escuta, deve comunicar a situação ao Conselho Tutelar, o qual acionará os outros órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente Vítima ou Testemunha de Violência, respeitando os fluxos estabelecidos localmente.

Em municípios que tenham centros integrados ou serviços definidos para escuta especializada, a comunicação com Conselho Tutelar poderá seguir fluxo diferenciado a depender da pactuação regional e local, prezando-se sempre pela não revitimização.

A comunicação deve ser acompanhada de relatório no qual conste o registro dos procedimentos já adotados pela unidade ou serviço socioassistencial e, quando houver, o livre relato da criança ou adolescente e as informações coletadas junto à família ou acompanhante, que possam subsidiar a atuação da rede intersetorial sem que a vítima ou testemunha de violência necessite repetir o relato sobre os fatos vivenciados, evitando-se, assim, a revitimização da criança ou adolescente.

g). Encaminhamento para acompanhamento especializado no CREAS:

Preferencialmente, as crianças e adolescentes em situação de violência a e suas famílias serão encaminhadas para acompanhamento socioassistencial especializado no PAEFI/CREAS. Observadas as demandas de cada caso, tal acompanhamento deve ocorrer em articulação com os demais serviços, programas, projetos e benefícios do SUAS, especialmente na relação de referência e contra referência com o PAIF/CRAS, de acordo com as demandas da família.

De acordo com a Lei e o Decreto que estabelecem e regulamentam o Sistema de Garantia de Direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, compõem esse sistema os órgãos de saúde, assistência social, educação, direitos humanos, segurança pública e justiça. Estes órgãos se dividem entre: órgãos da rede de proteção, considerando as instituições relacionadas às políticas de saúde, assistência social, direitos humanos e segurança pública, e órgãos de investigação e responsabilização que estão no escopo da segurança pública e da justiça.

 

Identificação de sinais de violência ou suspeita pelo (a) profissional do SUAS no decorrer dos atendimentos

Durante a realização de atendimento ou acompanhamento socioassistencial, em qualquer unidade ou serviço do SUAS, pode ocorrer a identificação de sinais físicos ou comportamentais que podem estar associados à ocorrência de violência contra criança ou adolescente, sem que haja, necessariamente, a revelação espontânea (verbal ou por meio de comunicação alternativa) para o (a) profissional do SUAS.

Assim, todas as trabalhadoras e todos os trabalhadores da rede socioassistencial devem estar qualificados e atentos para identificar essas situações, bem como realizar a acolhida da revelação espontânea, de forma a evitar a revitimização ou omissão diante de casos de violência contra crianças e adolescentes (e, mais grave, a repetição da violência).

Os sinais de violência geralmente se revelam no corpo ou por meio de comportamentos que podem ser observados em conversas informais ou atendimentos sistemáticos nos serviços e programas. Alguns sinais que merecem atenção são: lesão, hematoma ou marca pelo corpo; queixa de dores ou desconforto; mudança repentina do comportamento (por exemplo: uma criança que é extrovertida e comunicativa passar a ser mais retraída e calada); comportamento obsessivo, tiques, manias; sonolência, cansaço constante ou indisposição frequente; tristeza e isolamento social; baixa autoestima; agitação ou irritação extrema; perda da confiança nas pessoas; entre outros.

A presença destes sinais por si só não deve ser tomada como evidência de que houve uma violência, sendo importante, todavia, que os (as) profissionais estejam atentos a estes sinais e busquem mais elementos para compreendê-los.

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Elementos que não podem ser esquecidos durante a realização da escuta protegida no SUAS

No SUAS, a escuta especializada a que se refere a Lei nº 13.431/2017 e o Decreto nº 9.603/2018 poderá ser realizada no âmbito dos serviços, em razão de uma revelação espontânea ou livre relato em um contexto de atendimento já em andamento. Nas localidades onde houver centros específicos ou integrados para escuta especializada, nos termos do art. 16 da Lei nº 13.431/2017, recomenda-se a elaboração de fluxos e orientações locais para o referenciamento deste procedimento a estes centros.

A escuta especializada no SUAS tem analogia com a escuta qualificada já desenvolvida por profissionais que atuam nas unidades e serviços socioassistenciais, possuindo um caráter protetivo para a criança e o (a) adolescente.

Quanto a Escuta especializada no SUAS A Lei nº 13.431/2017, em seu art. 7º, estabelece que a “Escuta especializada é o procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade”.

 Já o Decreto nº 9.603/2018, em seu art. 19, detalha melhor sobre a escuta especializada, definindo-a como o:

“procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados”.

A referida Lei nomeia os atores que fazem esta escuta, de acordo com o escopo de cada um, e diferencia esse procedimento do Depoimento Especial, cuja finalidade é a produção de provas para o processo de investigação e responsabilização. Portanto faz-se desnecessário que sejam compostas novas equipes para a realização da escuta qualificada.

A escuta qualificada prevista na Política Nacional de Assistência Social e demais normativas do SUAS está presente no desenvolvimento de todos os serviços socioassistenciais, sendo atribuição de todas e todos profissionais que compõem as equipes responsáveis diretas pelo atendimento e acompanhamento socioassistencial e deve estar fundamentada em pressupostos éticos e respaldada pelo sigilo profissional.

A escuta é qualificada porque os (as) profissionais da assistência social devem exercitar ao longo de sua atuação a habilidade de escutar com atenção e respeito e de compreender de maneira ampliada as demandas, as necessidades e as potencialidades dos indivíduos e das famílias atendidos, demonstrando para com eles compromisso e responsabilidade diante da situação vivenciada.

Para além de um procedimento metodológico, a escuta qualificada é um processo contínuo e transversal ao trabalho social com famílias e indivíduos que possibilita conhecer a família e seu contexto, constituindo-se, assim, como elemento distintivo para atuação do SUAS no enfrentamento e prevenção das situações de vulnerabilidade, de risco, de violação de direitos e de violência. Nessa perspectiva, a escuta qualificada no SUAS é parte do trabalho social realizado nos serviços, programas e projetos do SUAS e deve ser orientada pelos objetivos da Assistência Social previstos na LOAS.

Leia também: Crianças e adolescentes: Garantia de Proteção Integral X Invisibilidade nos Serviços do SUAS 

A importância da educação permanente para a prática da escuta protegida de forma eficiente pelos trabalhadores do SUAS

Fatores como o despreparo de alguns profissionais para lidar com  situações complexas  que envolvem crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, a falta de fluxos instituídos formalmente para compartilhamento de informações, a dificuldade de estabelecer ações articuladas entre os órgãos do SGD, a limitação de recursos (financeiros, estruturais, materiais e humanos), dentre outras questões, contribuem para expor crianças e adolescentes à exaustiva repetição do relato sobre a violação sofrida e, ainda, para a morosidade e descontinuidade do atendimento e a baixa qualidade das ofertas.

Mediante isto, para ofertar um atendimento socioassistencial qualificado às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência e suas famílias, é importante que o órgão gestor da política de Assistência Social promova ou possibilite a participação de todos (as) os (as) profissionais do SUAS em ações de educação permanente, de acordo com a Política Nacional de Educação Permanente do SUAS – PNEP/SUAS.

Vale ressaltar que se faz necessária a realização de capacitações sobre temas e metodologias específicas para a escuta qualificada da revelação espontânea e do livre relato; a identificação de sinais de violência; o atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência e suas famílias; a diversidade dos públicos atendidos; as especificidades e complexidade das situações de violência e violações de direitos; articulação intersetorial e trabalho em rede, entre outros.

Esses espaços de qualificação oportunizam a proposição de metodologias e discussões sobre as dificuldades encontradas e mecanismos para sua superação, compartilhamento de experiências para suscitar novas ideias e aprimorar as ações já desenvolvidas, realização de análises mais coletivas e definição de procedimentos mais adequados a cada caso, visando a proteção da criança e do adolescente e a garantia de seu superior interesse. Esses recursos são importantes para melhor instrumentalizar e respaldar os (as) profissionais do SUAS diante de situações tão complexas, frente às quais podem se sentir despreparados para realizar o trabalho com as famílias e os indivíduos atendidos.

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Considerações finais:

Mediante todos os aspectos apresentados aqui, pode-se concluir que é primordial que todos os atores envolvidos no processo de implementação da Lei aqui debatida, deve empenhar-se em estabelecer em suas ações e devidas instituições a garantia de proteção as crianças e adolescentes vitimas e testemunhas de violência, assim como demanda a lei. Eliminando de maneira definitiva   a revitimização destes que devem ser resguardados de todas as formas de violência.

Referências:

BRASIL. Lei nº 13.431. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Brasília, 04 de abril de 2017.

BRASIL. Decreto nº 9.603. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. 2018.

BRASIL. Parâmetros de atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Brasília, 2020.

 

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