Escuta Protegida e sua relação com a Escuta Especializada no NO SUAS

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A Lei nº 13.431/2017 ficou conhecida como a Lei da Escuta Protegida. Esta legislação teve o objetivo de criar um Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes vítimas ou testemunhas de violência (SGDCA). Além de estabelecer o SGDCA, a Lei da Escuta Protegida visa possibilitar que os depoimentos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência sejam realizados com o apoio de uma equipe técnica capacitada, evitando-se o contato com o agressor e a reiteração do depoimento. Para isso a Lei de 2017 e o Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018 estabelecem diferenças entre Depoimento Especial e Escuta Especializada. Veja o que diz o Decreto:

“Art. 19. A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com o objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados […]

Art. 22. O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas”.

Considerando além desses conceitos, a regulamentação gradativa dos procedimentos nas diversas políticas públicas e sua relação com a Proteção Social é muito importante conversarmos sobre como isso precisa ser organizado mediante as ofertas de serviços do SUAS – Sistema Único de Assistência Social.

Vamos começar!?!?!?

Assistência Social e sua relação com a Lei da Escuta Protegida: importante ter atenção!!!

A Lei da Escuta Protegida na época de sua aprovação (2017) não alcançou consenso entre especialistas da área da infância e adolescência. Isso tem correlação com o fato de que na Política de Atendimento às crianças e adolescentes perpassa a atuação de diferentes órgãos, dos quais se exige uma articulação em rede (intersetorial), pois devem ser observados os princípios de integralidade e prioridade absoluta na proteção a este público.

Então em virtude desta diversidade compreende-se a ocorrência de tensões e disputas no processo de tomada de decisões para ordenamentos teóricos e metodológicos que interferem na atuação técnica e ética de diversos profissionais atuantes nesta Política de Atendimento.

Nesse sentido, o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) precisa orientar seus serviços de atendimento a crianças e adolescentes para atender às prerrogativas da Lei da Escuta Protegida. E, ainda, fazer isso estabelecendo relação intersetorial com os demais órgãos que compõem o SGDCA, como o Conselho Tutelar, as Delegacias – especializadas ou não, Ministério Público, Varas da Infância – ou Varas únicas, entre outros.

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Relação do SUAS com os demais órgãos do SGDCA

Devido ao fato de que no processo de elaboração e aprovação da Lei da Escuta Protegida, como dito, não houve consenso entre especialistas das diversas áreas, o Decreto de regulamentação, em 2018, precisou ser mais evidente no que se refere à distinção entre Depoimento Especial e Escuta Especializada. Contudo, mesmo assim persistem atuações distintas entre as redes de atendimento espalhadas pelo país, uma vez que os operadores dos órgãos de proteção, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social não raras vezes são pressionados na relação com os órgãos que possuem funções de investigação e responsabilização.

De toda maneira a maior clareza entre os conceitos possibilitou mais segurança para um posicionamento ético e técnico dos profissionais do SUAS diante de requisições, muitas vezes  equivocadas, por parte dos atores do SGDCA, como Conselho Tutelar e órgãos do Sistema de Justiça (Delegacias, Promotorias e Fóruns).

Antes mesmo da aprovação da Lei da Escuta Protegida a relação dos profissionais do SUAS com o sistema de justiça e conselho tutelar já era permeada de contradições e conflitos. Pode-se confirmar tal condição por documentos técnicos e cooperações firmadas para garantir o atendimento adequado dos usuários a partir das prerrogativas do SUAS. VEJA:

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA: As relações entre o Sistema Único de Assistência Social – SUAS e o Sistema de Justiça – 2015

NOTA TÉCNICA SNAS – 2016 

Reforçando a distinção entre Escuta Especializada e Depoimento Especial

Não é o objetivo deste texto destrinchar o procedimento de Depoimento Especial, mas é importante retomarmos seu conceito para marcar distinção com a Escuta Especializada.

Então, de acordo com o Decreto de 2018: Art. 22. O depoimento especial é o procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária com a finalidade de produção de provas”.

Assim, com sentido de não confundir a finalidade dos dois procedimentos e ainda de demarcar a importância de estruturação dos órgãos que compõem o SGDCA é que reafirmamos os conceitos, acrescentando que, nos termos do mesmo Decreto:

“Art. 19. […] § 4º A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados […]

Art. 20. A escuta especializada será realizada por profissional capacitado conforme o disposto no art. 27”.

Aos profissionais do SUAS é relevante estar atento às disputas institucionais e técnicas que estão colocadas sobre a execução da Lei da Escuta Protegida. Para tanto recomendamos o evento realizado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP-SP): Violência sexual contra crianças e adolescentes: prevenção, educação, cuidados e atenção em rede, confiram na íntegra aqui

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Desafios e possibilidades para a Escuta especializada no SUAS

Além de estabelecer os procedimentos de escuta de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, a Lei da Escuta Protegida estabelece por meio do Decreto nº 9.608/2018, no artigo 9º que: “Os órgãos, os serviços, os programas e os equipamentos públicos trabalharão de forma integrada e coordenada, garantidos os cuidados necessários e a proteção das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência […] I – instituir, preferencialmente no âmbito dos conselhos de direitos das crianças e dos adolescentes, o comitê de gestão colegiada da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, com a finalidade de articular, mobilizar, planejar, acompanhar e avaliar as ações da rede intersetorial, além de colaborar para a definição dos fluxos de atendimento e o aprimoramento da integração do referido comitê […]”.

Portanto, verifica-se que a constituição dos comitês, conforme estabelecidos na legislação, apresenta-se como potência para avançar na execução da lei e, ainda, possibilitar ao SUAS estruturar-se para de fato garantir Escuta Especializada nas situações de violência contra crianças e adolescentes.

Ocorre que na relação intersetorial com os demais órgãos do SGDCA, em especial com o sistema de justiça, não possuir protocolos e fluxos para atendimento em rede faz com que os desafios se ampliem cada vez mais e até pareçam intransponíveis.

Assim, definir o fluxo de atendimento, observados os requisitos da Lei e as possibilidades da rede, faz com que os atendimentos à criança ou ao adolescente ocorram de maneira articulada. Além disso, evita a sobreposição de tarefas e favorece a cooperação entre os órgãos.

Nessa organização intersetorial o SUAS precisará também olhar para si e avaliar como tem ocorrido sua relação com as requisições do sistema de justiça no atendimento às situações de violência e, também, como estruturar sua rede interna de equipamentos e serviços para qualificação do atendimento às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. Atentando-se ao fato de que a Educação Permanente é um dos eixos estruturantes da Política de Assistência Social e de que, para além da obrigação legal, é indispensável que:

Art. 27. Os profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência participarem de cursos de capacitação para o desempenho adequado das funções previstas neste Decreto, respeitada a disponibilidade orçamentária e financeira dos órgãos envolvidos (Decreto 9.603/2018).

A partir desses primeiros passos parece possível ao SUAS buscar meios de garantir o direito de crianças e adolescentes, ainda mais vulnerabilizados submetidos aos diversos tipos de violência. E para tanto é essencial executar adequadamente o acolhimento da revelação espontânea e Escuta Especializada destas vítimas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto confirma-se que o papel fundamental do procedimento de Escuta Especializada deve ter a “finalidade de proteção social e de provimento de cuidados”. E para tanto os profissionais que atuam no SUAS precisam observar suas próprias normativas, a exemplo do que está preconizado nos objetivos dos serviços socioassistenciais, especialmente ao Serviço de Proteção e Atendimento Especializado à Família e Indivíduo (PAEFI).

Por fim, não se observa que ocorra mudança substancial para o campo da assistência social com a Lei da Escuta Protegida, contudo as mudanças mais significativas ocorrem nas demais instituições como, por exemplo, a educação, a saúde e os órgãos de investigação e responsabilização, que precisam rever e, em algumas situações, alterar suas rotinas, mesmo que elas sejam informais, sem fluxos estabelecidos e compartilhados. Exemplo disso são as Fichas de Notificação/investigação de Violência utilizadas pelo setor de Vigilância em Saúde.

Leia também: Equipes de referência do PAEFI: atribuições e trabalho social  

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 13.431. Estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Brasília, 04 de abril de 2017.

BRASIL. Decreto nº 9.603. Regulamenta a Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. 2018.

BRASIL. Parâmetros de atuação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Brasília, 2020.

 

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