Demanda Reprimida no Bolsa Família: como o município pode agir?

Tempo de leitura: 7 minutos

Por Eugene Francklin

Segundo um relatório da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), em 2025 aproximadamente 1,9 milhão de famílias, o que equivale a cerca de 2,8 milhões de pessoas, estão elegíveis a receber o Bolsa Família, mas permanecem fora do programa. Esse dado, não é apenas uma estatística, mas um indicador de lacuna estrutural no sistema de proteção social, que exige respostas articuladas e planejamento local, impondo um desafio direto aos municípios.

Por que a demanda reprimida existe?

Analisar apenas o número não basta, é fundamental entender por que há tantas famílias elegíveis que não conseguiram entrar no programa. Entre os principais fatores estão:

  • Redução orçamentária e de repasses: Em 2025, os repasses federais para gestão do programa (triagem, cadastros, averiguações) foram reduzidos. Esse corte fragiliza a capacidade dos municípios de realizar busca ativa e atualização cadastral necessária para incluir famílias.
  • Capacidade limitada de atendimento municipal: Municípios com restrição orçamentária ou carência de estrutura enfrentam dificuldades para mobilizar equipes, fazer visitas domiciliares ou acompanhar famílias vulneráveis que nunca formalizaram o CadÚnico.
  • Deficiências no cadastro: Muitas famílias estão nos cadastros, mas com dados desatualizados ou inconsistentes, o que dificulta a inclusão. Processos de cruzamento de dados, averiguação e atualização nem sempre são contínuos. A falta de revisão cadastral recente pode levar ao bloqueio de famílias por inconsistência.
  • Critérios rígidos e limitação de vagas/repasses: Mesmo quando há famílias elegíveis, os limites orçamentários e de cobertura podem impedir a inclusão de todos, o que gera uma “fila” de espera.
  • Barreiras de informação, acesso e mobilização social: Há famílias vulneráveis que desconhecem seus direitos, que não estão bem orientadas ou não conseguiram acessibilidade para fazer o cadastro. Alcances territoriais, exclusão social, desinformação e estigmas podem impedir o acesso.

Esses fatores combinados fazem com que a demanda reprimida não seja apenas uma falha momentânea, mas um problema estrutural que exige atenção contínua e articulação local.

A existência dessa demanda reprimida expressiva evidencia que a política de transferência de renda, embora fundamental, não basta sozinha. A proteção social precisa avançar em integração, universalização real e políticas públicas estruturantes.

Qual impacto dessa demanda reprimida no Bolsa Família sobre o SUAS e os municípios?

Para quem atua no campo da assistência social municipal, a demanda reprimida representa consequências concretas, como:

  • Planejamento comprometido: Sem conhecer o real universo de pessoas em vulnerabilidade, os municípios têm dificuldades para projetar orçamentos, dimensionar equipes e prever a demanda por serviços. Isso fragiliza a gestão municipal e prejuízos podem ocorrer para a cobertura e qualidade dos serviços.
  • Aumento da desigualdade e vulnerabilidades sociais: A não inclusão no Bolsa Família perpetua privação de renda, insegurança alimentar, exclusão, fruto de uma estratégia de proteção social incompleta, o que reforça desigualdades estruturais.
  • Fragilidade da proteção social como política de Estado: A persistência de uma fila grande mostra que a política de transferência de renda pode não estar cumprindo integralmente seu papel de proteção universal. Para os municípios, isso significa conviver com um abismo social que pressiona a rede local.

 

O que os municípios podem fazer diante desse desafio?

Apesar das limitações federais, os municípios não estão impotentes. Há um conjunto de estratégias e ações que podem, de forma imediata ou progressiva, mitigar a demanda reprimida no Bolsa Família e fortalecer a proteção social:

  1. Busca ativa e mapeamento socioterritorial
    • Realizar levantamento das áreas mais vulneráveis, identificar famílias que reúnem condições socioeconômicas, mas não constam como beneficiárias.
    • Mobilizar CRAS, conselhos de assistência social, lideranças comunitárias, organizações da sociedade civil e movimentos sociais para chegar às famílias “invisíveis”.
    • Garantir visitas domiciliares, entrevistas e preenchimento/atualização correta do cadastro.
  2. Qualificação e atualização sistemática do cadastro
    • Promover revisões periódicas no cadastro social local.
    • Fazer checagem de renda, composição familiar, verificar dados inconsistentes, residências desatualizadas, óbitos, migrações, etc.
    • Incentivar o uso de sistemas integrados e cruzamentos com outras bases (saúde, educação, emprego) para mapear potenciais beneficiários.
  3. Fortalecimento da gestão municipal e do SUAS local
    • Organizar equipes com foco em inclusão, busca ativa e acompanhamento de famílias em situação de risco.
    • Priorizar orçamento municipal para apoiar a operacionalização do CadÚnico e do registro de famílias vulneráveis, mesmo quando o repasse federal for reduzido.
    • Promover parceria intersetorial com saúde, educação, habitação, direitos humanos para dar suporte às famílias de forma integrada.
  4. Controle social, transparência e mobilização comunitária
    • Ativar conselhos municipais de assistência social para monitorar a fila de demanda reprimida, exigir dados públicos e apoiar a inclusão.
    • Incentivar participação da comunidade, conselhos e movimentos sociais para denunciar invisibilidades e vulnerabilidades não atendidas.
    • Produzir relatórios municipais que evidenciem o problema e possam ser base para advocacy local e mobilização por recursos.
  5. Advocacy e pressão política por recomposição orçamentária e ampliação do programa
    • Utilizar os dados locais e nacionais para dialogar com gestores estaduais e federais, reivindicando ampliação do orçamento do programa.
    • Articular redes intermunicipais para fortalecer demanda e visibilidade, sensibilizar representantes políticos.
    • Combinar a transferência de renda com outras políticas de garantia de direitos como habitação, trabalho, saúde e educação para assegurar proteção integral.

Municípios, SUAS e sociedade civil precisam atuar como protagonistas na garantia de direitos, não apenas como executores de um programa, mas como vigilantes da proteção social, identificando lacunas e pressionando por políticas mais amplas.

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Conclusão: A gestão municipal como território de atuação estratégica

A demanda reprimida no Bolsa Família, representada pelas 1,9 milhões de famílias elegíveis não atendidas, é um indicador de que a proteção social no Brasil permanece incompleta. Mas, sobretudo, é uma chamada urgente à ação municipal.

Os municípios, por estarem mais próximos da realidade concreta das famílias vulneráveis, têm papel fundamental para transformar essa demanda em inclusão real. A partir de busca ativa, qualificação de dados, mobilização comunitária, articulação intersetorial e advocacy, é possível reduzir, ainda que parcialmente, essa lacuna.

Para o SUAS, para os conselhos municipais e para a sociedade civil, o desafio não é apenas técnico ou burocrático, é político, ético e humanitário. Cada família que permanece fora é uma vida vulnerável, uma oportunidade de dignidade perdida.

Agir não é opcional, é urgente.

 

Referências

Confederação Nacional de Municípios (CNM). Assistência Social Fila do Programa Bolsa Família (PBF) se aproxima de 3 milhões de pessoas. Estudo Técnico. Abril 2025. Disponível em: https://cnm.org.br/storage/biblioteca/2025/Estudos_Tecnicos/ET_ASOCIAL_05-2025_Fila_do_Programa_Bolsa_Familia.pdf?utm_source=chatgpt.com

FDR. Bolsa Família tem NOVA redução de beneficiários esse mês: O que explica isso? Fonte FDR: https://fdr.com.br/2025/11/17/bolsa-familia-tem-nova-reducao-de-beneficiarios-esse-mes-o-que-explica-isso/

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