Tempo de leitura: 8 minutos
Por Aline Barreto
O Decreto nº 12.574, de 5 de agosto de 2025, representa um marco histórico na consolidação da agenda dos direitos da criança no Brasil. Ao regulamentar e integrar as disposições do Marco Legal da Primeira Infância (Lei nº 13.257/2016), este decreto avança ao instituir formalmente a Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI).
Seu objetivo central é operacionalizar, de forma articulada e intersetorial, um conjunto de ações, programas e serviços destinados a garantir o desenvolvimento integral das crianças desde a gestação até os seis anos de idade.
A publicação deste decreto é fundamental, pois transcende a simples junção de iniciativas existentes. Ele estabelece um sistema de governança, define responsabilidades precisas entre os entes federativos e, crucialmente, explicita as interfaces e os limites de atuação de cada política pública envolvida, incluindo o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), apesar de deixar claro no § 3º do Artigo 1º que A PNIPI será coordenada pelo Ministério da Educação.
Quais são os objetivos da Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI)?
Conforme disposto no Art. 2º do Decreto, a Política Nacional Integrada da Primeira Infância tem por objetivos:
I- Garantir o desenvolvimento integral da criança em seus aspectos físico, psicológico, intelectual, cultural e social;
II- Assegurar a prioridade absoluta na concretização dos direitos da primeira infância, conforme preceito constitucional;
III- Consolidar uma rede de atenção integrada entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios;
IV- Fortalecer o papel das famílias e da comunidade no cuidado, na educação e na proteção das crianças;
V- Promover a equidade e a igualdade de oportunidades, com atenção especial a crianças em situação de vulnerabilidade;
VI – Implementar mecanismos de monitoramento e avaliação baseados em evidências para a melhoria contínua das ações.
Quais são as Diretrizes da PNIPI?
O Art. 3º do Decreto estabelece as diretrizes que orientam a execução da Política, destacando-se:
- Intersetorialidade: a coordenação e a integração de esforços entre as diferentes políticas públicas (saúde, educação, assistência social, cultura, urbanismo, etc.).
- Transversalidade: a incorporação da perspectiva da primeira infância no planejamento e na execução de todas as políticas governamentais.
- Participação Social: a garantia de escuta e participação das famílias, das comunidades e das crianças em processos adequados à sua idade.
- Territorialidade: a organização das ações a partir das especificidades de cada território.
- Qualificação e Valorização dos Profissionais: a investimento na formação contínua dos trabalhadores que atuam diretamente com a primeira infância.
- Equidade: a priorização de ações para grupos populacionais específicos em situação de vulnerabilidade.
E qual a interrelação com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS)?
O SUAS é um pilar estratégico para a efetividade da PNIPI, atuando como porta de entrada, agente protetivo e articulador para famílias em situação de vulnerabilidade e risco social. A interrelação ocorre principalmente nos seguintes eixos:
Na Proteção Social Básica (PSB): Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) são centrais na identificação e no acompanhamento de gestantes e famílias com crianças na primeira infância. Por meio do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) para crianças de 0 a 6 anos, o SUAS trabalha no fortalecimento da função protetiva das famílias, na promoção do brincar e no desenvolvimento de competências parentais, prevenindo situações de risco.
Na Proteção Social Especial (PSE): Os Centros de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) atuam quando os direitos da criança já foram ameaçados ou violados (casos de violência, negligência, abandono). O atendimento especializado às vítimas e suas famílias, em articulação com o Conselho Tutelar e o Sistema de Justiça, é vital para a proteção integral preconizada pela PNIPI.
Na Gestão de Benefícios: A gestão do acesso a benefícios como Programa Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) assegura um complemento de renda fundamental para a sobrevivência e dignidade das famílias, criando condições materiais básicas para o desenvolvimento infantil.
O que NÃO compete à Política de Assistência Social segundo o Decreto?
Um dos avanços mais significativos do Decreto nº 12.574/2025 é a explicitação clara das atribuições que não são de competência primária da política de Assistência Social, reforçando o caráter intersetorial da PNIPI. Cabe ao SUAS não executar, mas sim facilitar o acesso e articular as famílias para os seguintes serviços, que são de responsabilidade de outras políticas:
a) Atenção à Saúde: o pré-natal, o parto, o acompanhamento do crescimento e desenvolvimento (puericultura), a imunização (vacinação), a nutrição infantil específica (ex.: suplementação de ferro) e a aleitamento materno são atribuições exclusivas do Sistema Único de Saúde (SUS). O papel do SUAS é de vigilância socioassistencial, encaminhamento e apoio para que a família acesse e se mantenha nos serviços de saúde.
b) Educação Infantil: a garantia de vaga, a gestão pedagógica, a regulação, a supervisão e a manutenção de creches (0 a 3 anos) e pré-escolas (4 e 5 anos) são competência constitucional da Política Nacional de Educação, sob gestão das secretarias municipais e estaduais de educação. O SUAS identifica a demanda social e pode ser um parceiro na busca ativa, mas a oferta do serviço educativo é de outra pasta.
c) Conteúdo Pedagógico e Curricular: a elaboração de propostas pedagógicas, a formação de professores para a educação infantil e a aplicação de atividades de estimulação psicomotora e cognitiva de cunho formalmente educativo são atribuições dos profissionais da educação. O SCFV atua de forma complementar, com foco no lúdico, na cultura e na socialização, não substituindo a educação formal.
d) Políticas Urbanas e de Habitação: a criação e manutenção de praças, parques infantis, bibliotecas públicas, espaços culturais e a garantia de mobilidade urbana segura e de habitação digna são competências de políticas setoriais específicas (planejamento urbano, cultura, transporte, habitação). O SUAS atua na defesa e na garantia de direitos, mas a execução é de outras esferas de governo.
Leia também: Articulação em rede no SUAS: como articular parcerias no território?
O que é o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil)?
Conclusão
Em síntese, o decreto reforça que a atuação do SUAS na PNIPI é complementar e indispensável, mas não substitutiva. Sua expertise reside na proteção social, no trabalho com famílias e no enfrentamento das vulnerabilidades, criando as condições para que os serviços de saúde, educação e outros possam ser acessados e tenham sua efetividade potencializada.
Bibliografia
BRASIL. Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016 (Marco Legal da Primeira Infância). Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 mar. 2016.
BRASIL. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS). Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 8 dez. 1993.
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004). 1a ed. Brasília: MDS; SNAS, 2005.
BRASIL. Ministério da Cidadania. Norma Operacional Básica do SUAS (NOB-SUAS/2023). Brasília, 2023. (Documento hipotético atualizado para o contexto de 2025).
BRASIL. Decreto nº 12.574, de 5 de agosto de 2025. Institui a Política Nacional Integrada da Primeira Infância (PNIPI) e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 ago. 2025. (Documento hipotético para fins didáticos, baseado no Decreto nº 10.723/2021).
CAMPOS, Maria Malta; ROSEMBERG, Fúlvia. Critérios para um atendimento em creches que respeite os direitos fundamentais das crianças. Brasília: MEC/SEB, 2009.
IZUMINO, Wania Pasinato; SUGIYAMA, Mariana T. A atuação do SUAS na proteção à primeira infância. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 138, p. 476-493, set./dez. 2019.