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Por Mauro Dias, Ariane Macedo e Marisabel Luchesi
Um estudo recém publicado na The Lancet Regional Health – Americas desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em colaboração com pesquisadores de Harvard, mostra que mesmo com uma redução de 36% no número de suicídios em escala global, os países americanos fizeram o caminho inverso. No período entre os anos 2000 e 2019, a região teve aumento de 17% nos casos. Nesse período, o número de casos no Brasil subiu 43%.
Em relação aos casos de autolesões ocorridos no Brasil, a pesquisa do Cidacs/Fiocruz constatou que, em 2022, houve aumento das taxas de notificação em grupos de todas as faixas etárias, desde os 10 aos mais de 60 anos de idade.
Apesar desta problemática ainda ser um grande tabu social e, por muitas vezes, trazer à tona dores e sofrimentos intensos, o suicídio é um fenômeno que precisa ser colocado em pauta e ser melhor compreendido pela sociedade. Precisamos dizer que o problema não fica restrito ao indivíduo que quer tirar a própria vida, nem aos seus familiares, mas é algo que envolve fatores de saúde mental, além de aspectos sociais, econômicos e até políticos.
O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) é considerado um dos mais importantes autores a abordar a temática do suicídio num estudo técnico mais abrangente. Para Durkheim, mesmo o suicídio parecendo algo relacionado apenas a esfera individual, o fenômeno por si é caracterizado como um fato social. É totalmente influenciado pelo estado e a sociedade em que o indivíduo que o comete está inserido. Ou seja, além de ser uma questão psíquica de doenças e transtornos mentais, existem muitos outros fatores que também estão atrelados a esse fenômeno.
A realidade da desproteção social, ou seja, quando o Estado falha no seu dever de proteger os indivíduos/famílias submetidos a preconceito, violências, isolamento, insuficiência ou ausência de renda, entre outros, pode levar essas pessoas a situação de vulnerabilidade e risco social. É neste contexto que o suicidio está inserido e as situações apontadas compõem a complexa trama do comportamento suicida.
Dessa forma, compreendemos que para além do suicidio ser uma grave questão de saúde pública, a sua prevenção só é efetiva com ações multisetoriais, dentre elas as ações no campo da assistência social.
Suicídio e a questão social
Como dito anteriormente, dentre os principais fatores de risco quando falamos de suicídio, está o sofrimento psíquico devido a questões sociais. Ou seja, o comportamento suicida pode ser consequência das faltas de acesso a direitos básicos. Alguns exemplos são o desemprego e ausência de renda, preconceitos e a impossibilidade de suprir as necessidades básicas para si e sua família. Neste contexto, é possível compreender que o suicídio não é uma questão exclusiva da saúde mental, como é igualmente uma questão social. Considerando o contexto no qual estamos inseridos – uma sociedade patriarcal, racista, homofóbica, de desigualdade social – são muitas as situações que provocam sofrimento.
Embora o sucidio afete indivíduos de todas as classes sociais, há estudos que tratam da questão redobrando a importância de refletirmos e compreendermos como os atravessamentos sociais, políticos, econômicos, históricos e culturais agem, impactam e reverberam nesse fenômeno. Ampliar nossa visão contribui para enxergarmos a complexidade que envolve o suicídio e contrapõe uma visão que reduz, muitas vezes, o fenomemo ao aspecto individual.
É nesse contexto que podemos começar a nossa reflexão sobre a função e responsabilidades da assistência social, enquanto política pública de proteção, vigilância social e garantia de direitos.
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Como elaborar o Plano de Acompanhamento Familiar no SUAS?
E como a Política de Assistência Social pode contribuir no combate ao suicídio?
A Assistência Social contribui tanto no aspecto preventivo do suicidio, como também no atendimento aos indivíduos e/ou suas famílias que foram vitimas do suicidio.
Dessa forma, compreendemos que o acesso de indivíduos/famílias aos direitos básicos é materializado pelo SUAS, por meio das seguranças que afiança: a acolhida, o acesso à renda e o convívio familiar, social e comunitário, etc. Isso quer dizer que, na execução dos serviços socioassistenciais ofertados, as situações apresentadas pelos indivíduos e familiares – e levando em conta sua complexidade – tais seguranças são a base para a construção e execução do trabalho social realizados.
Assim como na saúde, o SUAS é organizado por diferentes níveis de complexidade e conforme a complexidade da situação apresentada se oferta a Proteção Social Básica e/ou a Proteção Social Especial.
Tratando do tema em tela, quando pensamos em prevenção ao suicidio é no CRAS, equipamento que oferta Proteção Social Básica, que o indivíduo e sua família podem fortalecer vínculos, garantir a convivência, acessar renda, enfim, ter acesso a recursos que possibilitam protegê-lo das violações de direitos e violências, diminuindo a chance do sofrimento psíquico em função de fatores sociais. É nesse equipamento também por meio da oferta do PAIF que podemos trabalhar as questões culturais, históricas e de preconceitos que envolvem o tema. Planejar ações, oficinas, grupos, encontros coletivos onde as questões que contribuem para a prevenção ao suicidio sejam trabalhadas com as famílias torna-se imprescindível. É necessário pensar e planejar as ações preventivas e proativas, com o olhar no território, entendendo e identificando as situações de maior risco.
Contudo, infelizmente, há situações em que as violências e outras violações já estão instauradas. Tomemos como exemplo uma pessoa que tentou suicídio, ou mesmo que tenha compartilhado ou dado sinais de estar em tamanho sofrimento que esteja considerando essa possibilidade. Nestes casos, a Proteção Social Especial tem como papel contribuir para a superação destas violações de direitos, assim como proteger para que não ocorram. Além disso, a dimensão especializada do SUAS pode também contribuir para as ações preventivas e proativas e realizá-las em conjunto com a Proteção Social Básica.
Dessa forma, o CREAS – equipamento da Proteção Social Especial de Média Complexidade – pode atuar junto à família ou indivíduo em sofrimento, visando a superação da situação e também planejar em conjunto com o CRAS as ações preventivas e proativas nos territórios para a prevenção e combate ao suicídio.
Ressaltamos que, quando falamos em suicídio, os comportamentos de risco vão para além do ato de dar fim à própria vida. É possível identificar comportamentos como o uso problemático de álcool e outras substâncias psicoativas como enfrentamento de problemas relacionais e sociais, automutilação e até a tentativa de autoextermínio. Tais ações, grande parte das vezes, revelam outras violências que as antecederam. Assim, fica claro que o aspecto social não pode ser negligenciado quando olhamos para a temática do suicídio. O SUAS como política pública social que provê atendimento não apenas no campo material, como também no campo relacional tem papel importante no enfrentamento dessa questão.
E então, como se dá o acesso ao SUAS?
O CRAS é um equipamento “porta aberta”, ou seja, assim como o posto de saúde, o indivíduo pode buscá-lo espontaneamente.
Quando há um contexto agravado, é possível acessar o CREAS também espontaneamente, mas é comum que o acesso se dê a partir de encaminhamentos da rede. Situações identificadas por outras políticas como saúde (equipe psicossocial do hospital ou um profissional da UBS, por exemplo) e educação (a escola comunica o Conselho Tutelar, que encaminha ao CREAS) podem e devem ser encaminhadas, quando identificada a pertinência.
É importante lembrar que, apesar do psicólogo ser um dos profissionais das equipes dos CRAS e CREAS, não é seu papel no SUAS fazer psicoterapia. Quando identificada a demanda de cuidado em saúde mental pelo profissional do SUAS, cabe à equipe do PAIF ou PAEFI encaminhar a pessoa à rede de saúde (trabalho em rede intersetorial).
No entanto, as equipes de referência precisam assumir uma postura ética frente a essa complexa questão, evitando assim a reprodução de preconceitos e/ou até mesmo a culpabilização do indivíduo e/ou de sua família. Compreendendo o seu papel como representante desse Estado que deve prover a proteção social e contribuir para mitigar os efeitos das complexas questões sociais que fragilizam e vulnerabilizam indivíduos/famílias, expondo-as a maiores fatores de risco.
Conclusão
A contribuição do SUAS na composição de ações intersetoriais é de fundamental relevância, além de ter o protagonismo no que se refere à oferta de proteção social no seu campo de atuação. Através das estratégias do trabalho social que promovem a convivência respeitosa e protegida, criando redes de apoio e possibilitando vivências de escuta, valorização e não culpabilização, temos condições de construir poderosos fatores de proteção e ações no combate ao suicídio.
Para a Dra. Anna Moura, as ações têm mais sucesso quando são feitas de forma combinada entre pessoas de diferentes setores por meio da rede. Cada um cumpre um papel específico nas várias etapas da prevenção e controle do suicídio (MOURA, 2011, p. 23).
Em síntese, é fundamental que os atores envolvidos estejam seguros e preparados, por meio de Educação Continuada e de gestão baseada em dados, para que possam compor, junto com as políticas de saúde e educação, a rede de proteção e apoio tanto às pessoas com comportamento suicida, quanto às famílias enlutadas.
Referências
MOURA, Anna Tereza Miranda Soares de et al. Prevenção do suicídio no nível Local. Disponível em: https://www.cevs.rs.gov.br/upload/arquivos/201706/14115228-prevencao-do-suicidio-no-nivel-local.pdf
Agência Fiocruz de Notícias;
The Lancet Regional Health – Americas;
Conselho Nacional de Saúde – Orientações para a atuação profissional frente a situações de suicídio e automutilação. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/images/CRPDF-Orientacoes_atuacao_profissional.pdf